terça-feira, janeiro 26, 2010

O aborto e a lei, segundo uma promotora

Publicado no blog do André Forastieri - http://blogs.r7.com/andre-forastieri/

A história sobre o aborto – a intromissão de religiosos no assunto, e a covardia do governo sobre o tema – continua rendendo. Uma amiga aqui do blog, promotora, escreveu o texto abaixo. Pediu para não ser identificada. Ela entende de lei. E convive cotidianamente com injustiças corriqueiras.

Leia com atenção:
"Uma grávida, maior de 18 anos, provoca aborto em si mesma ou consente que alguém o provoque. É crime, segundo o artigo 124 do Código Penal Brasileiro. A pena mínima prevista no código é de um ano de detenção e a pena máxima pode chegar a três anos de detenção. Isso significa que uma mulher, processada por aborto que provocou ou consentiu, será mesmo condenada e presa? Pouco provável. Pelas seguintes razões:

- quando ocorre um crime, o delegado de polícia instaura inquérito policial para investigar. No caso do aborto, ele é obrigado a colher indícios de que a grávida provocou intencionalmente ou permitiu que alguém realizasse o aborto. Aborto natural, logicamente, não é crime.

E nem aborto culposo, na hipótese da grávida imprudente que não se cuidou e abortou. Aborto é crime que deixa vestígios, então, para ser provado, necessário o exame do cadáver do feto.
Geralmente, abortos ocorrem clandestinamente, em casa ou em clínicas ilegais. Ou então, para serem descobertos pela polícia, dependem de notícia dada por médicos ou pessoas próximas da grávida. Essas circunstâncias (necessidade de delação, de preservação do cadáver do feto e até mesmo de apreensão de instrumentos ou medicamentos que indiquem a efetiva intenção de abortar) contribuem para que o número de inquéritos policiais instaurados para apuração de aborto provocado ou com consentimento da gestante sejam reduzidos.

- concluída a investigação, o inquérito é analisado pelo promotor de justiça, que fará a "denúncia": ou seja, a acusação formal e escrita, dirigida ao juiz, narrando a prática do crime e pedindo a instauração de processo criminal contra a denunciada. Mesmo que, na denúncia, o promotor conclua a acusação pedindo a futura condenação da denunciada, esse pedido não o vincula até o final do processo. Se, futuramente, colhidas as provas, o promotor se convencer da inocência da ré, ou de que não há provas suficientes para considerá-la culpada, pode pedir sua absolvição.

- no caso de uma mulher ser denunciada (acusada) por aborto provocado ou que consentiu, pode ser que o processo não seja julgado. Isso porque existe uma lei processual, a Lei n. 9099/95, que dispõe que, nos crimes nos quais a pena mínima não for superior a um ano de prisão, o promotor de justiça pode oferecer para a pessoa acusada uma proposta de suspensão do processo. O aborto entra nessa possibilidade.
Mas a ré não pode estar sendo processada pela prática de outro crime, nem ter sido condenada anteriormente por crime.

Se a acusada aceitar a proposta do promotor, o processo ficará suspenso por dois anos. Nesse tempo, ela terá que comparecer no fórum uma vez por mês, para assinar uma ficha no cartório judicial. Também só vai poder sair da cidade onde corre o processo para viajar, com autorização do juiz. Terminados os dois anos, se ela cumpriu as condições e não cometeu outros crimes, o processo é extinto e arquivado, sem sentença de julgamento, ou seja, sem a acusada ter sido julgada culpada ou inocente.

- se a acusada não tiver direito à proposta de suspensão (por exemplo: ela está sendo processada por outro crime. "Processada" é diferente de "investigada" em inquérito policial. Apenas denúncia, que significa acusação, recebida por um juiz gera processo) ou se não a aceitar, o processo se inicia e serão colhidas as provas orais em audiência judicial, com juntada de documentos, laudos no processo etc. Só que não será o juiz que irá julgar a acusada de aborto.

Aborto, segundo o Código Penal, é crime doloso (intencional) contra a vida. A Constituição Federal diz que os crimes dolosos contra a vida (homicídio, infanticídio, aborto, instigação a suicídio) serão obrigatoriamente julgados pelo júri popular.
Então, sete pessoas da sociedade, os jurados, vão decidir se uma acusada levada a julgamento será condenada ou absolvida. O veredicto se dará pela maioria de votos, com os jurados depositando, em uma urna, cédulas com a palavra "sim", para condenação, ou "não", para absolvição. A votação é secreta, cada jurado não pode revelar seu voto e nem se comunicar com os demais jurados. Sendo a votação secreta, os jurados votam conforme sua consciência e convicção, baseados nas provas expostas pela acusação e defesa.

Não podem justificar oralmente ou por escrito o porquê de seu voto. Se a maioria de votos concluir pela condenação, o juiz se limitará a calcular a pena a ser aplicada para a condenada. Se primária e de bons antecedentes, provavelmente receberá pena mínima, um ano de detenção.

Nessas condições, não será presa, pois:
a) o regime de cumprimento de pena, para penas de até quatro anos de prisão, é o aberto, segundo o Código Penal,
b) terá direito à suspensão condicional da pena (com condições de cumprimento semelhantes à da suspensão condicional do processo).

Assim, ainda que receba pena máxima, de três anos, não será presa. Apenas se for reincidente em crime doloso não terá direito à suspensão da pena e terá que cumpri-la em regime semi-aberto.
Julgamentos de abortos provocados ou consentidos pela gestante são bem incomuns no dia a dia forense, em razão do número reduzido de inquéritos instaurados para apurar esse tipo de crime e da possibilidade de suspensão do processo. Condenações são ainda mais raras, pois os jurados decidem de acordo com suas convicções, sem ter que revelar o voto.

Efetiva prisão não acontece, pois apenas crimes apenados com reclusão resultam em cumprimento de pena em regime fechado. Aborto provocado ou consentido pela gestante é apenado com detenção. A pena dá direito a regime aberto para a não reincidente em crime doloso.
Concluindo: aborto provocado/consentido dificilmente gera condenação e punição na prática. O processo acaba sendo mera formalidade. A fraude é facilitada: mulheres grávidas podem mentir na DP dizendo que foram estupradas, conseguir um BO falso e abortar na legalidade e na facilidade. Se é assim, mais um motivo para descriminalizar, não?

E é isso. Agora, quer saber minha opinião pessoal sobre o assunto? Sou a favor da descriminalização.
Além da parte criminal, eu também faço a parte de adolescentes infratores e vejo que, na grande maioria dos casos, os meninos e meninas desandam para o crime porque têm pais omissos, desinteressados, despreparados, bananas – bom, isso quando existe um pai. Geralmente, é só a mãe, cheia de filhos.
Mas não fui eu que fiz as leis, nem tenho o poder de mudá-las.

Enquanto for crime, é meu dever fazer as acusações contra quem abortou, senão, quem comete crime sou eu. Mas não é pelo fato do aborto ser crime que existem mulheres que deixam de abortar, com medo de punição. Se há mulher pobre que quer abortar e não o faz, é por medo do tipo de atendimento médico que será oferecido.
E também não acho que a descriminalização não acontecerá por causa de medo da reação da Igreja ou troço que o valha. Isso é desculpa, pois exigiria um belo aumento dos gastos do governo na área da saúde. Isso sem falar no despreparo dos hospitais e médicos.

Nas últimas décadas, houve no país a proliferação de faculdades de quinta categoria, incluindo medicina.
Se inquérito policial de autoaborto é algo incomum, inquérito para apurar erro médico, geralmente em hospitais públicos, é bem corriqueiro. Já pensou a quantidade de açougueiros despreparados trabalhando indevidamente no serviço público? E curetagem é uma cirurgia muito delicada, já que o útero é raspado. Se perfurar, é tchau.
Mesmo descriminalizando, muitas mulheres pobres continuariam a morrer, por falta de investimento do governo e péssima formação de médicos"

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