BBC In Pictures - Search for Haiti Survivors
O recente terremoto no Haiti, considerado pela ONU a maior tragédia desde que a organização foi criada, levanta novamente a questão da função do fotojornalista de guerra e sua não-interferência com o "assunto".
Quando os fotógrafos de guerra começam a agir como os paparazzi das revistas de fofoca, e cercam vítimas já estressadas como aves de rapina, as perguntas começam a surgir:
Até onde o profissionalismo, a vaidade, a vontade de ganhar prêmios ou a simples morbidez são defensáveis quando abaixar a câmera e ajudar pode ser mais eficiente? O que é ser profissional em uma situação extrema como essa que o Haiti está vivendo?

©Kim Ludbrook, European Pressphoto Agency (EPA)
©Kim Ludbrook, European Pressphoto Agency (EPA)
A foto ao lado, realizada na África do Sul pelo fotojornalista Kim Ludbrook, acabou sendo motivo de umainflamada discussão no Festival de Perpignan em setembro de 2008, já que os jornalistas retratados admitiram que nem um deles presente se preocupou em perguntar ao gravemente ferido "assunto" se ele precisava de ajuda.
O que parece ser óbvio para todos, é motivo de reflexão para alguns.
Pois bem, o que aconteceu no Haiti é terrível, mas é hora de ajudar.
Sim, os fotojornalistas contratados, profissionais de jornais, revistas, sites e redes de televisão fazem o que tem que fazer, isto é, mostram o horror da situação e assim provocam uma reação positiva, estimulando doações e atitudes proativas por parte de governos,  corporações e pessoas. O jornalismo desempenha um papel fundamental enquanto algo pode ser feito, e para mudar situações antes esquecidas.
O que assusta a todos, porém, é a quantidade de free-lancers, amadores, curiosos e aventureiros que estão indo, pretendem ir, ou já estão em Porto Príncipe, capital do Haiti.
O jornalista free-lancer pode ser aquele que, com a decadência do jornalismo impresso e consequentes demissões em massa, está fazendo o que os consultores indicaram; "se vira", faz a reportagem, traz as fotos e reza para alguém comprar. Geralmente um profissional das antigas, experiente, que faz seu trabalho com competência; difícil é vender a matéria, com a concorrência predadora no Haiti.
Pode, por outro lado,  ser um fotógrafo independente (ou um coletivo), profissional, sensível, que mostra o que tem que ser mostrado com decência, com respeito, e ainda assim tocando o coração das pessoas para que ajudem a mudar a situação; o Ig e a Lou, do Lost Art, fizeram exatamente isso com "After the Fire", uma cobertura tocante do fogo que consumiu uma favela em São Paulo, no Dia das Crianças.
Mas também pode se auto-denominar free-lancer aquele "adrenalin freak" que quer trazer histórias de aventura para sua vida boring, e em seu fotoclube, ou fórum, ou Facebook, ou Twitter,  manifestar sua pretensa coragem, seu egocentrismo, sua busca por fama. Não, não estou exagerando; conheço pessoalmente jovens brasileiros que nunca trabalharam na vida, de classe média alta, e que foram para zonas de conflito no oriente médio, devidamente paramentados, levando várias câmeras, lentes e coletes para justificar sua existência medíocre e entediante. Não trouxeram uma foto decente, mas quanta história…
Por outro lado, mesmo o mais experiente fotojornalista profissional geralmente tem consciência social, compaixão, e frequentemente deixa de fotografar para ajudar; um exemplo clássico é o do grupo formado por Timothy Fadek, Kai Wiedenhöfer; os fotógrafos Chris Anderson, Thomas Dworzak and Paolo Pellegrin da Magnum; Kevin Sites do Yahoo! News, Wael Ladki do Líbano, Lefteris Pitarakis da Associated Press, e vários jornalistas turcos que carregaram nas costas civis feridos e idosos nos bombardeios das cidades de Bint Jbeil e Aitaroun, em 2006, deixando de lado suas câmeras. Claro, é uma regra não-escrita do jornalismo não interferir nas cenas fotografadas, mas o limite é o da decência humana.
A discussão só cresce; "A pack of war paparazzi" (uma matilha de paparazzis de guerra) diz o site DVAFOTO sobre a quantidade de jornalistas em zonas de conflito; em outro post, mais recente, fala "Like moths in a flame" (como mariposas na lâmpada), especificamente sobre o Haiti; a jornalista Jay Newton-Small, que está trabalhando em Porto Principe, afirma no Twitter que os haitianos não precisam de mais jornalistas nem fotógrafos, querem sim médicos, água potável e comida.
Uma excelente forma de se entender o assunto é lendo o post de Dee Xtrovert que descreve o que ele passou em Sarajevo durante a guerra com a Sérvia; voluntários aos montes, sem treino, ocupando espaço em abrigos já escassos, se alimentando de comida e água não-existentes, sem falar o básico da língua do país em que estavam, e na realidade sendo uma pesada carga a mais para os que ali tentavam sobreviver.
Me parece lógico; se não puder ajudar, não atrapalhe; se não quer cavar com as mãos concreto despedaçado em meio a poeira e cheiro insuportável, e não tiver um contrato firme para publicar o material (ou seja, se não é um fotógrafo profissional de hard news), por favor; faça um cheque e o envie a qualquer uma das inúmeras organizações sérias de apoio e ajuda internacional ao Haiti, como a Cruz Vermelha.
Não tem dinheiro? Doe sangue.
Mas insisto: não leve sua câmera para passear em um país devastado pela tragédia.
Não é um show da Broadway; não é um filme de Hollywood; é a dura realidade do país mais pobre do hemisfério ocidental.
Por favor, deixe sua impressão abaixo; você iria para o Haiti? Para que?

Update 01: Não sei o que vocês vão achar, mas o fotojornalista Andy Levin está com um workshop marcado para dia 2 de fevereiro, no Haiti. Diz que "ainda há vagas".
Valor da inscrição: U$ 1.500
O fotógrafo defende sua posição e insiste em que esta é uma "oportunidade" para seus alunos.
O link foi postado no Twitter pelo Ignacio, Lost.Art:http://duckrabbit.info/blog/2010/01/have-100-eyes-lost-the-plot/


TERREMOTO NO HAITI
Jornalistas não são pedras
Por Leticia Nunes, de Nova York em 19/1/2010


É enorme a chance de um jornalista que cobre um desastre como o do Haiti sentir-se impelido a ajudar as vítimas que agonizam à sua frente. Sua missão de testemunhar e reportar um fato com isenção, de ser uma figura neutra, de respeitar a ética da profissão, perde-se em questão de segundos diante da possibilidade concreta de ajudar o outro, e por um motivo óbvio: o jornalista é humano.
Na semana passada, o neurocirurgião Sanjay Gupta, correspondente médico da rede americana CNN, foi bastante criticado por examinar um bebê de 15 dias diante das câmeras. Gupta contou aos telespectadores, enquanto andava rapidamente por uma rua de Porto Príncipe, que haviam lhe chamado para ajudar a criança, atingida na cabeça no momento do terremoto de terça-feira (12/1). A mãe morreu, e o pai segurava o bebê com uma expressão confusa, como se ainda não tivesse lhe caído a ficha sobre o que acabara de passar. O médico pega a criança, examina seus movimentos, verifica a possibilidade de alguma fratura no crânio e faz um curativo na ferida da cabeça.
"Certamente há casos em que um jornalista qualificado pode e deve fornecer assistência médica quando a necessidade é imediata e séria", afirma o professor Bob Steele, do Instituto Poynter. "O problema no caso do doutor Gupta é que ele já fez isso em diversas ocasiões no Iraque e agora no Haiti. Se é imperativo que ele intervenha como médico, que saia de seu papel jornalístico e o faça. Não se pode é colocá-lo para cobrir as mesmas pautas das quais participa. Isso confunde a reportagem jornalística e embaça a lente da observação independente", defende Steele. Ele também acusou a CNN de fazer marketing com o vídeo, ao exibi-lo diversas vezes na TV e dar destaque a ele na internet. "Francamente, não é uma grande história", justifica.
Para Gupta, não há um conflito ético em usar seus conhecimentos médicos durante as pautas que cobre. Em 2003, ao acompanhar uma unidade médica da Marinha americana no Iraque, o correspondente realizou cinco cirurgias. Na semana passada, ele escreveu em seu perfil no Twitter que é um repórter, mas, em primeiro lugar, é um médico. "Muitos me perguntaram: é claro que, se preciso, irei ajudar as pessoas com meus conhecimentos de neurocirurgião", afirmou.

Resgate

No fim da semana passada, outro caso rompeu a neutralidade jornalística. Integrantes de duas equipes de TV australianas deixaram a rivalidade de lado para resgatar um bebê preso nos escombros. A menina estava deitada junto aos corpos dos pais, que morreram no terremoto, quando o cinegrafista Richard Moran, que trabalha para a emissora Nine Network, ouviu seu choro. Moran largou sua câmera e começou a retirar pedaços de concreto do caminho, enquanto o intérprete Deiby Celestino tentava encontrar a criança.
As imagens do resgate foram feitas pela maior concorrente da Nine, a emissora Seven. "Das ruínas, surgiu esta pequena menina, e eu nunca vou esquecer. Ela não chorou. Ela olhava assustada, como se estivesse vendo o mundo pela primeira vez", contou o repórter Robert Penfold, da Nine. As imagens, que rodaram o mundo, mostram ainda o correspondente da Seven, Mike Amor, segurando a criança e lhe dando água. "Naquele momento, era maior do que o jornalismo", disse Amor. "Eu não via nada tão extraordinário desde o nascimento de meu próprio filho. A emoção, para todos nós, foi inacreditável."
O caso do resgate feito pelos australianos é diferente da consulta médica realizada por Sanjay Gupta e talvez se encaixe na classificação de "aceitável" pelos críticos, já que se tratava de uma emergência. Ainda assim, eles poderiam questionar se não havia mais ninguém no local para socorrer a criança, se era realmente necessário que um cinegrafista largasse sua câmera, e mais um milhão de "ses". Fato é que o manual ético se perde em meio a uma situação extraordinária, e é muito difícil criticar uma decisão como a dos correspondentes envolvidos sem ver a destruição que viram de perto – desprotegidos do filtro da TV – com todos os seus odores nauseantes e sons desesperadores.
Os jornalistas tinham a obrigação, como jornalistas, de resgatar a menina dos escombros? Não. Mas o fizeram, e salvaram uma criança. Sanjay Gupta tinha a obrigação, em seu papel de correspondente, de examinar o recém-nascido e fazer um curativo limpo em sua cabeça? Não. Mas o fez, e um pai, que de outra maneira não teria ajuda médica, respirou aliviado. Esperar que não se viole normas éticas em situações como a do Haiti é acreditar que jornalistas são simples pedras, desprovidos de sentimentos ou emoções. Com informações da AFP [18/1/10] e do Los Angeles Times [14/1/10]