quinta-feira, agosto 05, 2010

'Arnesto' fala do saudoso Adoniran

Por José Antônio Rosa
(Matéria retirada do site do Jornal Cruzeiro do Sul)

O telefone toca na casa da rua Tagi, no bairro paulistano da Mooca, e quem atende passa a ligação, depois de saber do que se trata, para Ernesto Paulelli. Aos 95 anos, ele começa a conversar em tom festivo: "Você quer fazer uma entrevistinha? É um grande júbilo falar, atender à imprensa". Quase ninguém sabe que Paulelli é, na realidade, "Arnesto", nome pelo qual ficou conhecido depois que Adoniran Barbosa lhe dedicou uma de suas principais criações, o "Samba do Arnesto".

O Mais Cruzeiro soube da história a partir de uma sugestão de pauta postada no site do jornal por Claudinei Paulelli, sobrinho de Ernesto. Ele que mora em Campinas, procurava na internet informações para um trabalho que desenvolve e leu na versão on line do jornal, reportagem sobre o show "Seu Rosa e Seu Barbosa", que o produtor Carlos Madia realizou no Campolim no mês de abril, para homenagear o centenário de nascimento de Adoniran e de Noel Rosa.

Foi o que bastou para Claudinei avisar o jornal de que o tio poderia ser entrevistado. "Ele está muito bem e pode contar histórias interessantes", mencionou depois. O internauta tinha mais do que razão. Seu Ernesto é uma figura. Carismático e dono de uma memória prodigiosa, relatou detalhes do encontro que resultou numa das mais importantes composições da música popular brasileira da década de 50.



Ernesto e Adoniran, porém, se conheceram no final dos anos 30. Para ser preciso, ele lembra, em 1938. Então vendedor de uma fábrica de cera, a Recorde (com "e" no final mesmo), Paulelli era, também, músico. Frequentava rodas de samba, acompanhava artistas em apresentações nas rádios. Numa dessas ocasiões, na Record, foi apresentado ao compositor. Adoniran, conforme Paulelli, era, àquela altura, "relativamente famoso", mas sempre se mostrou despachado, brincalhão, irreverente.

Assim que o avistou, pediu um cigarro. Paulelli não fumava. "Então, me dá seu cartão". Adoniran recebeu o cartão do recém-conhecido, e disse que não lhe daria o seu porque simplesmente não tinha. Nunca teve, na verdade. Ao ler o nome impresso, comentou: " - Então você é o Arnesto?". Paulelli o corrigiu: " - Não, sou Ernesto. Com "E". Adoniran emendou: " - Pois, a partir de hoje, você será Arnesto. E tem mais: vou lhe fazer um samba! Aduvida?". "Fiquei lisonjeado com o gesto. Ganhei, ali, naquele dia, um irmão", contou Paulelli.

O tempo passou, os dois não se encontraram mais, até que, em 1955, dezessete anos depois, Ernesto e a mulher ouviram, na Rádio Bandeirantes, o locutor anunciar: " - Vamos ouvir, agora, com Os Demônios da Garoa, o Samba do Arnesto". Paulelli gritou para a esposa; " - Alice! Essa peteca é minha! Esse samba é meu!". Dona Alice não entendeu a princípio, mas ouviu com o marido a canção que tocava. Ao final, os dois, abraçados, choraram de emoção pela homenagem. Paulelli disse que nunca "aduvidou" de que Adoniran cumpriria a promessa.

O "Samba do Arnesto" foi um dos grandes sucessos daquela fase, mas também deu a seu Ernesto a fama de "furão". Para quem não se lembra, a música fala de um sujeito que convida os amigos para uma festa e não aparece. São muitas as versões que tentam explicar como surgiu a composição. Adoniran, em depoimento a um programa da TV Cultura, explicou que Arnesto teria sido, na verdade, irmão de Nicola Caporrino, seu parceiro que assinava "Alocin". Conhecido por inventar histórias, Adoniran Barbosa não foi exatamente fiel aos fatos nesse caso. Foi o próprio Nicola quem esclareceu o mal entendido, segundo o pesquisador Celso de Campos Júnior, autor da biografia do autor de "Trem das Onze".

Consta que, em meados dos anos 50, Adoniran costumava passar os feriados ou fins de semana com amigos no Guarujá. Nicola o acompanhava nestas viagens, até o momento em que, por apertos financeiros, deixou de ir. Numa tarde de sexta-feira, Adoniran foi até a casa do amigo, acompanhado de seu cachorro Peteleco. Nicola pediu à mulher que dissesse que não estava, e escondeu-se no quarto. O cachorrinho, porém, localizou o fujão que acabou viajando. Já na praia, depois de umas e outras, Adoniran sugeriu ao amigo que não mentisse; apenas "deixasse um recado na porta". Nicola devolveu: "Isso dá samba". E deu mesmo. Adoniran lembrou-se da promessa feita há muito tempo ao amigo que conheceu na rádio Record e compôs a canção.

Em 1957, novamente nos corredores da Record, Ernesto Paulelli se preparava para acompanhar um artista quando viu, "a cinco metros" de onde estava, Adoniran. " - Te fiz o samba. Você gostou?", perguntou Adoniran. Paulelli, claro, falou da alegria de ter sido homenageado, mas disse que ficou "numa situação embaraçosa" por conta da mancada de que a música falava. Adoniran soltou, então, outra de suas pérolas: " - Arnesto, se não tivesse mancada, não saía samba". Os dois se tornaram, então, compadres, no dizer de Adoniran. Para selar de vez a amizade, Adoniran entregou a seu Ernesto a partitura com a música, que autografou. Paulelli guarda a relíquia até hoje.

Seu Ernesto só voltaria a saber do amigo, quando ele passava por problemas de saúde. "Estava muito doente e internado no Hospital São Luís, na região da Brigadeiro Luiz Antonio. Fiquei sabendo, depois, que ele morreu. Uma grande e irreparável perda". No centenário de nascimento de Adoniran, Ernesto Paulelli, que está muito perto de completar 100 anos ("vai passar disso, com certeza", garante o sobrinho Claudinei) foi o centro das atenções. Procurado por jornais, contou inúmeras vezes como foi o seu encontro com o compositor. Na "Virada Cultural", embarcou no "Trem das Onze" junto com outros artistas, entre os quais o grupo "Trovadores Urbanos", que cantaram temas de Adoniran. Quem pesquisar na internet, encontrará, entre vários, um vídeo no qual ele canta o samba que ganhou de presente.

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